segunda-feira, 17 de outubro de 2016

OS ÚLTIMOS INSTANTES...

No chão, atirada entre os jarros da varanda e a grama do jardim, Dilenalva contorcia-se numa mistura de break e espasmos musculares semelhantes ao transe mediúnico dos raspados em Nanã Buruquê.

o rosto mergulhado numa poça de lama e sangue escondia o prazer daquele momento. Sim ! Dilenalva estava feliz por ter sido assassinada. Deleitava-se com aquela situação e sua dança parecia fazer parte de um ritual criado para celebrar a sua morte.

Seu corpo pequeno arrastando-se na lama lembrava os bodes sacrificados nas tragédias da antiga Grécia... Uma espécie de oblação aos deuses do teatro a quem ela tanto prestara culto, mas de quem nunca recebera uma benção, um sinal ... Seu sacrifício era uma forma de protesto, uma oferenda macabra despachada entre margaridas e ervas contra o mal olhado.

Enquanto sua língua trêmula de prazer e agonia decodificava o sabor da grama impregnada de sangue e lama, sua mente atravessava o labirinto frio de seus desejos. Partia, sem ter consciência, para uma viagem ao desconhecido. E a medida que ia se desprendendo de seu corpo mergulhava no abismo de uma existência secreta.

“Ninguém resiste a sete tiros” refletia satisfeita.

Seus olhos já não enxergavam nada além da escuridão...

De repente sentiu-se tocada por uma especie de lembrança luminosa. Via de longe uma pequena fagulha de luz que vinha ao seu encontro tornando-se cada vez maior, até que conseguiu identificar a imagem: o crucifixo de sua avó. Cristo de ouro pregado numa cruz de prata tendo pequenos rubis como cravos.

Diante da visão, Dilenalva, não pode conter o riso.

“Ah! Morrer martirizada, eis aqui a glória de toda cristã.”

E suas palavras abriram os portais do inexplicável e como S. João ela foi arrebatada ao mundo das revelações... A região do inconsciente onde ficam escondidas as lembranças mais remotas, aquelas que por serem sagradas são sempre esquecidas...

Lá estava ela , menina no interior da Bahia seguindo a procissão de Nossa Senhora das Dores.

Via claramente a imagem de gesso balançando sobre o altar decorado por cravos de renda negra e quaresmeiras de papel crepom. Virgem vestida de roxo com os olhos voltados para o nada, mãos postas na altura do ventre e no coração sete punhais de prata...

Ao seu redor as beatas cantavam suas angustias:“Pela virgem dolorosa, vossa mãe tão piedosa...” canto acompanhado pelo ranger quase inaldivel das contas dos rosários...

“Viva o sofrimento da virgem” gritou o padre

“Viva” respondeu o povo satisfeito.

Espetáculo mórbido, mas tão repleto de vida... Cruel e encantador ao mesmo tempo...O cheiro das velas misturava-se as fragrâncias ordinárias nos corpos suados... Era uma orgia...uma orgia tão profana que seus participantes chamavam-na de sagrada...

Assim somos nós humanos...Transformamos nossos desejos em divindades... Nossas verdades genitais são cobertas por véus de mistérios e as religiões nada mais são do que a tradução errada de nosso desejo de prazer...

Seguindo a procissão de suas lembranças Dilenalva dobra a esquina e vê a chegada do Senhor dos Passos...Cristo vestido de púrpura carregando uma imensa cruz negra...A cruz de nossos pecados...nossos prazeres....Ele surge coroado de espinhos, pés e ombros dilacerados...Olhos vítreos a olhar a todos, mas sem enxergar ninguém...

Vinha sobre um andor negro carregado por homens com túnicas roxa e olhares perdidos...Ao redor centenas de outros homens carregando velhas e rosários...

O encontro das duas imagens foi celebrado com lamentos... Preces e sussurros acompanhadas por matracas e fogos de artificio... Um festim que faria Dionísio sentir inveja...

Parada diante da imagem da virgem, Dilenalva identificou-se. Os punhais de prata eram a alegoria de seus desejos secretos... As mãos no ventre eram a sua condição de mulher...Os olhos distantes eram sua própria ventura...Nunca fora capaz de olhar para si... esteve a vida inteira a procurar nos outros a razão de sua existência...

DILENALVA AGORA ESTA MORTA, E VOCÊ?

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